20 outubro 2006

Capítulo 01

Foi assim o meu dia: mesmice. Grito de um rádio-relógio que pula uma hora. Pulo da cama. Sono. Aventura em busca dos chinelos perdidos. Sonolência. Banheiro, banho, barba. Roupas. Trânsito. Pingado. Ou pingado e trânsito. Sei lá: é sempre a mesma coisa, nada de novo. Expediente da manhã. Fila de almoço. Agência bancária. Expediente da tarde. Trânsito. Jantar. Qual jantar o quê? Passam das onze da noite. Cama. Boa noite.
De vez em quando me dou um presente: vou à cafeteria, me entregar à tentação da gula. Nela, percebe-se belíssimas sensações: com estrutura aparente, os pilares e as vigas metálicos à mostra, conjugados à alvenaria crua, sem textura, garantem o equilíbrio contrastante com a parede bem acabada, lisíssima pela massa corrida que nela se aplicou e alisou, suporte da belíssima obra de Jackson Pollock - ternamente pálida, cortada por finas navalhas que saem das artérias da tela. O ar, climatizado, garante o frescor constante e o aroma bem equilibrado do café. Sei, sei, o "perfum" é artificial. Mas me entrego: seria o Davi, de Michelangelo Buonarroti, um homem de verdade?
Por entre as cadeiras me desvio e reparo na solidão do espaço. Apenas as duas funcionárias da casa estão ali, naquela tarde da noite para um proletário. Procuro o meu cantinho de sossego. Ando aqui e ali, olhos rápidos e focados, buscando o melhor ângulo para se observar, a melhor acústica, a melhor brisa.
Encontro: no melhor dos melhores, um livro repousa sobre a mesa. Logo: ocupado. Continuo minha pesquisa e escolho uma mesa bem atrás da melhor opção. Pensando bem, acho que a mesa que escolhi é melhor que a outra. Lembro-me da fábula do lobo e das uvas.
Um belíssimo sorriso anota meu pedido, desaparece e ressurge com o néctar que mereço: um capuccino piu delicatto, ao qual me dedico com esmero no ritual de bem sorve-lo. Deliciosamente, me aquece o corpo e o espírito. Meu corpo rejubila-se: eis o maior segredo que, creio, esconde este suco indiano misturado ao leite. Às vezes agradeço aos céus por ter-nos garantido homens que não colocaram tal bebida no rol do vício: discriminado, portanto, eu seria. “Seu ébrio!!!” – diria a bela moça a que me dirigiria. “Que pecado...” – asseverariam as carolas. Fiquemos assim.
Pronto. Hora de ir para a caminha. O caminho é o mesmo, mas na ordem inversa. Êpa: olha o livro ainda ali, gente! Agora botei reparo: enquanto estive ali, sentado e em excelso deleite, não presenciei ninguém a se dirigir àquela mesa. Ninguém, aliás, a se mexer dentro daquele ambiente, à exceção das duas funcionárias, mesmo porque o local continuara vazio durante todo este tempo. Decido me aproximar dele.
O livro possui uma capa amarela, amarelão mesmo, com o título em dourado. Igualzinho a este aqui, que você percebe na foto aí, abaixo, de minha biblioteca, minha cara ou meu caro (como preferir ser tratado). O título: “O livro amarelo”. A curiosidade é a mãe de todas as necessidades. Ou a necessidade é a mãe de todas as invenções? No momento, fico com a primeira: me aproximo cuidadosamente, como quem não quer nada, mas com os olhos para lá e para cá, o corpo leve, lesto, verificando, claro, se alguém se aproxima. Toco o livro, estabelecendo a primeira prova material: o livro é verdadeiramente físico! Ele efetivamente existe. “Eureka!” – salta-me um rompante arquimediano.
Ninguém, nadica de pitibiribas, aparece. Olho para a moça do caixa, já com o livro aberto em minhas mãos e protegido pelo meu tronco dos olhares da outra funcionária. Percebo que ela nem sequer se preocupa comigo. Mas imagino. Pra dar um clima, obviamente. Rabisco uma olhadela: apesar de aparentemente em branco (oras, um livro em branco!?), noto que me engano, posta uma belíssima carta, colorida, que serve de prólogo, de prefácio de si. “Não, Ióre, não faça isso!” – me censurei. E se fosse meu e, ato contínuo, pegasse alguém tocando o meu livro, mexendo nele, se esfregando... sei lá: tem louco pra tudo. O que é que tu tá fazendo aí, ô companheiro?!! – certamente eu vociferaria ao indivíduo, no mais moderno e gramatical bom som. Portanto, não aprovaria.
Volto, então, a depositar o livro à mesa. Mas isto não é justo – argumentei, como se um outro eu estive bem ali, plantado à minha frente, me encarando. Me privei até agora de me assentar aqui, tive que me contentar com uma mesa localizada em ambiente de inferior qualidade... ora, ora: alguém tem que pagar por isto... – e perseverando – ...nada mais justo do que aquele que me privou do melhor local de pagar pelo feito... está decidido!. Num ato digno de Alexandre, aquele mesmo, cantado em verso e prosa aos quatro ventos da terra, o grande, tomo de assalto o pequeno objeto. É meu. E ponto.
Ponto?! Mas que ponto?! Certamente, não um ponto final: logo vem o outro, o terceiro, aquele todo de branco e com asas às costas, com uma harpa que soa uma insuportável, harmoniosa e expressiva combinação de sons. Se fosse somente os sons, a música, ainda vá lá... mas ele, não contente, quer mais. Quer me pregar uma peça: Meu filho – começa – ...pense bem, para quê fazer isto? Qual o bem que tal ato trará para.... Ih, e lá se vai o meu tempo. CHEGA! Tudo bem, tudo bem, vamos lá. Me dirigi ao caixa.
Meus parcos trocados, agarrados ao tecido de meu bolso (juro que eu posso ouvi-los gritando: “não, por favor, não nos tire daqui: é o nosso único lar, o único lugar em que fomos tão bem cuidados, quentinho... não, não, por favor, não!!!) são tomados pela moça do caixa, também possuidora de outro lindo sorriso, desvanecendo minha conta. Às minhas costas, anjo e demônio se degladiam em sofismas, tentando me convencer de que, mantendo o tal livro amarelo sob minhas axilas é fato mais constrangedor do quê a simples impressão de meu odor característico em suas folhas. Tenho que resolver este impasse. E concluí:
- Por favor, minha cara, estava eu àquela mesa quando verifiquei que alguém havia esquecido este livro sobre a mesa. Por acaso você sabe de quem é? – fui indagando, torcendo por algo a meu favor.
- Não, não. Se o senhor quiser, deixe comigo que, caso alguém o reclame, o entregarei ao dono.
Terrível! “Caso alguém o reclame, o entregarei ao dono?!”. Por acaso, sabe quanto me custou ficar sentado ali, àquele canto, privado daquele excelso local? Sabe? Certamente que não. Se soubesse, haveria de ratificar, de confirmar minha decisão. Mas não: “caso alguém o reclame, o entrarei ao dono.”. Confesso que essa educação, este jeito de falar todo educadinho, às vezes, me enerva.
- Tudo bem, minha querida. Aqui está. – e ponto. Final.
- Obrigada.
Saí dali cuspindo fogo. Educadinha. Por que devolver o livro? Chatinha. E a indulgência que o dono do livro teria que me pagar? Babaquinha. Que dono do livro o que... achado não é roubado!
- Hei, moço. – escutei. Virei-me.
- Amanhã eu não trabalho. – continuou a moça, a mesma que estava trabalhando junto ao caixa e que, agora, está aqui, bem à minha frente, em pé - Vai que a outra garota que me substituir se esqueça e este livro, sei lá, acabe se extraviando. Vamos fazer o seguinte: leve-o e deixe o seu número de telefone. Eu o deixarei anotado num "post-it", junto à mesa, caso alguém o reclame.
- Se alguém aparecer, certamente entraremos em contato com o senhor.
Êpa. “Senhor”??? Essa doeu.
- Não sei não. Será que isto não causará transtornos ao dono do livro? – iluminou-se o educadinho aqui.
- Pode ficar tranqüilo. Claro, se isto não for lhe causar nenhum transtorno...
Certamente que não, nenhum mesmo! Obrigado, obrigado, obrigado.
- Fiquemos acertados, portanto, assim. Obrigado.
E ponto. Agora sim: ponto final.